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Ressocialização através da educação e do acolhimento: experiências nos cárceres do nordeste brasileiro

O Brasil tem uma população carcerária de 607,7 mil presos, segundo os últimos dados divulgados em 2014 pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (Infopen).  Deste total, mais de 40%  são presos provisórios, ou seja, ainda não passaram por julgamento nem em primeira instância. Uma população carcerária com cerca de 222 mil pessoas sem condenação é uma estatística aterrorizante.

Somado a esses números, temos as más condições das cadeias. A superlotação dos presídios brasileiros ano após ano vem sendo tema de escândalo internacional. As condições de degradação às quais são submetidas as pessoas custodiadas pelo Estado brasileiro coloca em questão a eficácia do sistema prisional como ambiente de recuperação dos apenados e suscita e suscita diversos questionamentos sobre esse sistema.

Embora seja um tema cercado de polêmica, pois em algum momento sempre aflora nossos ânimos punitivos, não se pode ignorar as graves conseqüências que a prisão, tal como é mantida hoje no Brasil, pode trazer à diversas famílias, ao conjunto social e à nós, ou à qualquer um de nós como indivíduos passíveis de um dia passar também pela experiência do cárcere.

Assim, têm-se que o sistema carcerário brasileiro padece mediante o descaso dos poderes competentes que não conseguem efetivar os preceitos da Lei de Execução Penal que tem como um dos principais objetivos promover a ressocialização dos condenados e consequentemente a reinserção destes ao convívio social, o que por si justifica que se busquem alternativas de resgatar a dignidade, a liberdade psicológica e o bem-estar do aprisionado.

Na prisão as atividades fora da cela como ler e escrever e outras práticas profissionais e educativas significam ter contato com um pouco de liberdade, além de possibilitar a redução de pena, o que acaba funcionando como estímulo para a participação nas ações, vale ressaltar que existem critérios para que o preso possa participar, uma delas é a conduta, o bom comportamento.

Investir esforços para tornar possível esses espaços na prisão é o esforço de algumas das organizações que compõem a Rede Solivida.

Foi assim com o Projeto Nova Vida da cidade do Crato/Ceará que desenvolve ações voltadas para a ressocialização e dignidade dos presos e presas da Unidade Prisional do município.

Hermano, diretor do Projeto Nova Vida, quando e foi presidente da Comissão dos Direitos Humanos do Crato, Ceará nos anos de 2001 e 2002, teve um contato maior com a rotina carcerária e pode constatar diversas situações deploráveis, intervindo muitas vezes para que os direitos humanos fossem garantidos, o que despertou a vontade de realizar um trabalho social voltado para os presos.  Desde então promove ações que visam melhorar a situação desses apenados dentro dos muros da prisão num esforço  que vem alcançando bons resultados.

Projeto Nova Vida muda o ambiente da prisão em Crato, Ceará

O Ceará registra o maior número de presos sem condenação do país, segundo dados do Infopen, divulgados em dezembro de 2017 pelo Ministério da Justiça.

 A Unidade Prisional do Crato, no Ceará abriga cerca de 230 homens e mulheres nessas condições dos quais, 22 participam ativamente das ações promovidas pelo Projeto Nova Vida, entre elas o plantio de hortaliças, plantas medicinais e ornamentais e também criação de galinhas e produção de ovos, ações que fizeram parte do Projeto Semear e Colher e que vem impactando positivamente  a rotina dos detentos da Unidade Prisional.

O diretor do Presídio Cícero Diego diz ser “notória a mudança comportamental nas dependências internas e no convívio entre os presos, antes marcado por muitos conflitos.”

A primeira ação desenvolvida pela ONG na Unidade foi o Projeto “Cadeia lugar de Cidadania”, que através de uma parceria com a SINGER, recebeu 4 máquinas de costura que foram utilizadas em oficinas profissionalizantes direcionadas aos detentos e que teve por objetivo não somente uma profissionalização mas principalmente, contribuir na ressocialização e integração dos aprisionados na sociedade. Os resultados positivos desse primeiro trabalho intensificou a certeza que esse caminho era viável de ser percorrido e geraria frutos.

O Projeto Nova Vida por meio do Projeto Semear e Colher ampliou e melhorou os serviços prestados na Cadeia Pública do Crato e conquistou novas parcerias que vieram fortalecer as ações. Entre as parcerias firmadas está o Instituto Federal do Ceará- IFCE, que garante assessoria técnica e alguns instrumentos e insumos como enxadas, pás e sementes para o plantio, além da doação de suínos, ovinos e caprinos (aguardando a entrega). A parceria com a Universidade Federal do Cariri-UFCA conta com a assessoria de alunos do Curso de Agronomia que semanalmente visitam e acompanham os trabalhos desenvolvidos na cadeia dando o suporte técnico necessário para as ações.

O trabalho desenvolvido na Cadeia Pública além de mudanças comportamentais vem promovendo mudanças no espaço físico, flores foram plantadas, espaços de convivência foram criados e tudo é mantido e cultivado pelos presos. Essas pequenas transformações amenizaram o cenário árido e austero próprio dessas instituições e tem contribuindo para que se garanta o disposto na Lei de Execução Penal, que resguarda os direitos dos condenados, bem como egressos do sistema prisional, que prevê o direito ao convívio saudável, higiene pessoal e o direito de ser efetivamente ressocializado, evitando que voltem a praticar crimes contra a sociedade.

Hoje, como resultado dessas ações, a Cadeia Pública do Crato Ceará conta com uma plantação de maracujá, criação de galinhas e produção de ovos, hortaliças e canteiro de plantas medicinais. Tudo que é produzido é para consumo dos internos e o excedente é destinado às famílias dos detentos, bem como o adquirido com a venda dos ovos e galinhas, que é revertido para ajudar a custear algumas despesas de manutenção do Projeto.

Em face da precariedade do sistema prisional, muitos obstáculos precisaram ser enfrentados em prol da continuidade do trabalho e muitas conquistas importantesforam alcançadas, parcerias foram firmadas ao longo do tempo e o reconhecimento e êxito deu visibilidade e voz ao Projeto e força para prosseguir a jornada que ainda está longe do fim.

Sistema Carcerário e Educação no Ceará

No Ceará, a Secretaria da Educação do Estado (SEDUC), em parceria com a Secretaria da Justiça e Cidadania (SEJUS), garante a oferta de escolarização em 50 unidades prisionais distribuídas em 42 municípios com 52 salas de aula para atender aos internos interessados em iniciar ou continuar seus estudos.

Essa oferta de escolarização nas unidades prisionais é efetivada por meio da Educação de Jovens e Adultos-EJA, fundamentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de nº 9.394/96, art. 37, Lei de Execução Penal nº 7.210/84, art. 17 a 21 e Resolução CNE/CEB nº 02/2010 e atende ao que dispõe o Plano Estadual de Educação em Prisões, elaborado em 2012 pela SEDUC e SEJUS articulados com diferentes segmentos sociais envolvidos com os direitos da população carcerária e em cumprimento às determinações do Decreto nº 7.626, de 24 de novembro de 2011 da Presidência da República.

Dois importantes projetos são desenvolvidos na Educação em Prisões: Projeto Luz do Saber, de alfabetização digital e o Projeto de Remição pela Leitura, em que parte da pena do interno é remida por atividades de leitura, conforme estabelece a Lei nº 15.718/2014.

Centro Educacional Profissionalizante do Flau demonstra a importância do acolhimento

O Centro Educacional profissionalizante do Flau do bairro de Brasília Teimosa no Recife (PE) através da sua fundadora irmã Aurieta, realiza uma ação bem diferente das que estamos acostumados a ver: ela decidiu sair da sua zona de conforto e foi evangelizar e desenvolver a cidadania nos presídios do estado de Pernambuco, propriamente falando no Complexo do Curado.

A atividade acontece através de visitas semanais e em grupo de agentes de Pastoral. Dependendo da necessidade e disponibilidade há até duas ou três visitas semanais na mesma unidade. De preferência nas quartas e sextas feira as Irmãs Aurieta e Graça visitam a unidade prisional do Complexo do Curado.

O objetivo das visitas consiste em ver como estão sendo vivenciados os direitos humanos, quase sempre ameaçados. Irmã Aurieta afirma: “nos deparamos muitas vezes com pessoas que foram esquecidos pelos familiares e pelo poder público, pessoas que deveriam estar em liberdade e estão vivendo nos cárceres, não sabemos o que dói mais, se é ser esquecido naquele mundo cão ou aprender a viver naquele universo desumano e cruel, na maioria das histórias dessas pessoas há sempre uma história de abandono, de exclusão e de falta de oportunidade para vencer na vida. Toda semana, trazemos para casa uma lista de nomes de pessoas que não recebem visitas dos familiares. A nossa intensão é procurar saber como está o processo dessas pessoas e ver o que podemos fazer para ajuda-los a voltar para uma vida digna”.

Muitos recebem apenas uma pena de exercer um trabalho social em ONG’s  e em espaços públicos, com isso a Turminha do Flau, além de ir até os presídios, recebe voluntários que, de outro modo, estariam presos: “recebemos jovens e adultos que estão cumprindo pena alternativa, através do convênio que o Flau tem com a Vara de Execução de Penas Alternativas, o juiz encaminha e orienta para que ambos possam dar oportunidade ao outro de se inserir na sociedade e na família.  Já recebemos várias pessoas para prestar serviços ao Flau, o que nos têm ajudado no desenvolvimento das ações sobretudo no Recanto Frei Beda – Sítio do Flau”.

Até hoje já passaram pela organização 60 jovens e adultos com idade entre 19 e 45 anos, 05 presídios masculinos e 01 feminino atendido pelas irmãs do Flau. Para elas a cidadania além dos cárceres é um termo muito amplo e bonito, mas segundo elas “precisa ser praticado para que de fato possamos dizer que dentro e fora dos cárceres as pessoas privadas de liberdade vivem com cidadania. O termo “cidadania” é para nós ainda utopia, imaginem o que não seria para as pessoas privadas de liberdade”, refletiu a irmã sobre o termo.

Para os beneficiários esta atividade que é desenvolvida é importante para eles, pois eles se sentem valorizados. “Eu acho que as pessoas de fora muitas vezes acreditam mais em nós do que os nossos familiares e do que nós mesmos. Eu vejo que é uma forma da gente voltar a sociedade e refazer a nossa história” disse um dos beneficiários da ação.

Para muitos deles voltar a sociedade é uma ponte para recomeçar sua história, que antes não viam outra saída, como diz uma das beneficiarias do projeto, “ Mudou meu jeito de pensar as coisas. Às vezes eu achava que nem tudo tinha saída, mas convivendo no sítio com as pessoas do Flau eu vi que é possível resolver os problemas que nós enfrentamos no dia a dia. Com essa convivência eu me vi responsável pelos meus filhos.. E para isso eu tenho que deixar de vez as drogas, a bebida, etc”.

Esta ação é de suma importância tanto para a sociedade quanto para os seus atendidos, pois em conjunto eles podem mudar a vida dessas pessoas que muitas vezes são esquecidas: “a família que nos quer sempre por perto. Se o Flau acredita em nós, nós também temos que acreditar que é possível mudar. Se não fosse o Flau ter me dado várias chances eu acho que eu não estaria mais vivo. Eu não teria a minha família. Eu não estaria contando essa história”, concluiu um dos atendidos pela organização.

 

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