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REPENSANDO FORMAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO EM TEMPOS DE PANDEMIA E ISOLAMENTO SOCIAL

Durante 5 lives, a Rede SoliVida e convidados trabalharam em discussões sobre os entraves do preconceito racial desde a escravidão aos dias atuais

Desde o primeiro caso de COVID-19 na China até março de 2020, quando surgiu a primeira vítima do coronavírus no Brasil, muitos questionamentos surgiram de como o país lidaria com a possibilidade de disseminação em massa do vírus após acompanhar meses antes as medidas adotadas por países na Ásia e Europa.  Contudo, apesar de todas as recomendações sugeridas e comprovadas pelo OMS, o Brasil enquanto estado federativo e representado pelo presidente Jair Bolsonaro demorou e até ridicularizou as medidas adotadas em países que viviam a pandemia antes da America do Sul, com isso, o que foi percebido foi uma sequência de equívocos e cada Estado estabelecendo regras de convivência e isolamento de forma individualizada.

Conforme a pandemia foi avançando no país e os primeiros óbitos em virtude da doença começaram a aparecer nos noticiários um caso ganhou repercussão nacional, em 19 de março, quando a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro confirmou a primeira morte por coronavírus no estado e a vítima era uma empregada doméstica de 63 anos que tinha diabete e hipertensão e teve contato com a patroa, que esteve na Itália e voltou para o Brasil com a doença.

Na terceira semana de março, quando o Brasil já registrava mais de 500 casos confirmados da COVID-19 e as primeiras recomendações da OMS sobre os procedimentos de cuidados contra o vírus começaram a ser propagados, o fator desigualdade social se apresentou como um dos principais pontos de como e a quem a pandemia poderia afetar diretamente. As orientações mínimas sugeriam isolamento social, uso de água e sabão para higienização das pessoas e dos produtos comprados, contudo, os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) salientam que mais de 16% da população, ou quase 35 milhões de pessoas, não têm acesso à água tratada e quase metade da população do Brasil continua sem acesso a sistemas de esgotamento sanitário, ou seja, 47% dos brasileiros, o que significa que quase 100 milhões de pessoas não tem acesso a saneamento básico.

Quando o fator raça e classe passaram a ser interseccionados com a COVID-19 foi possível perceber que apesar dos primeiros infectados brasileiros serem pessoas de classe A e B, as primeiras mortes foram de pessoas pobres, periféricas e pretas. São pessoas que apesar de todas as recomendações de isolamento social, para evitar aglomerações e higienização ainda assim não puderam seguir essas regras, pois temiam a perda dos seus empregos, foram homens e mulheres que continuaram utilizando transportes lotados já que não foram liberados por seus respectivos “patrões”.

Percebendo a importância de discutir e abordar com instituições parceiras os reflexos raciais nesse momento de pandemia, a Rede Solivida organizou uma sequência de cinco lives que discutiram o racismo no âmbito histórico, da saúde mental, da identidade negra, políticas públicas e das artes, inclusive para fornecer um parâmetro básico sobre a vivência de pessoas negras no Brasil. Durante as cinco semanas, os encontros contaram com a moderação de Frei Wellington Reis, com pessoas que estudam e trabalham as problemáticas do racismo no dia-a-dia, além de representantes das ONGs que compões a Rede.

Indagado sobre o papel das ONGs nesse enfrentamento ao racismo relembrou o quão importante é discutirmos e combater as situações de preconceito racial inclusive dentro das instituições. “Penso que a SoliLive abordar as várias facetas do racismo e seus impactos foi uma proposta interessante para enfrentar um problema muito sério, que por muito tempo foi negado no nosso país. As lives não poderão exaurir todas as questões, porque são profundamente complexas, porém, foi uma possibilidade de se discutir de forma adulta, a partir de várias vertentes esta situação tão cara às nossas comunidades’”, enfatiza Frei Wellington.

Para trabalhar os processos e disseminações do preconceito racial no Brasil e no mundo, as lives começaram a discussão com o “Processo Histórico”, por entender que o racismo é um tema que por muito tempo não foi amplamente falado. E no caso brasileiro falar de racismo é estudar como cerca de 4,8 milhões de pessoas africanas foram trazidas de forma escravizada para nosso país.

Refletindo sobre a exploração dos “novos mundos” pelos europeus, observou-se na conversa como a escravidão naquele momento impulsionou a economia na Europa. O mestrando em História pela UFBA, Mateus Santos reforça que se percebe a escravidão em diversas sociedades da Antiguidade, mas que a modalidade da escravidão vivenciada entre os séculos XV a XIX foi uma modalidade sistêmica de exploração do homem pelo homem, juntamente com o avanço do capitalismo e da economia europeia. “Existem escritos do séc. XVI que se discutia a moralidade e política da escravidão, neles encontraram um ponto de vista que a escravidão era pensada como uma reabilitação do indivíduo, supostamente retirando este ser de um espaço lido bárbaro e pagão, para que em seguida pudesse ser inserido num espaço presumivelmente diferente, assim adentrando ao estilo de vida e a fé europeia”, relata.

Apesar de ser documentando na história do mundo enquanto uma prática do ganhador sobre o derrotado, a escravidão implantada na descoberta dos novos mundos negou a humanidade dos negros, a população escravizada foi coisificada e transformada em mercadoria e o reflexo desse sistema se mantém até os dias de hoje em todo o mundo tendo como pilar estrutural o racismo.

Entendendo o modo como se estruturou a sociedade brasileira, do Brasil Colônia a República, não é possível falar sobre saúde mental sem analisarmos a ferida ancestral e histórica causada pelo processo de escravidão. E a live “Identidade Negra, Saúde Mental e Mulheres” debateu de que forma a saúde mental serve como um ponto de apoio e auxílio para essa população que atualmente lida com as cargas de sofrimento vividas por seus ancestrais.

“Não é possível conversar sobre saúde mental sem tratar a precariedade social do Brasil, se as pessoas não têm acesso à educação, a cuidados básicos e a ambientes seguros, não tem como dialogar com elas sobre saúde mental e os impactos dessas questões”, pontua a psicóloga e pós-graduando em Saúde Pública, Nathália Carvalho. Que ainda reforça que os serviços de saúde no Brasil ainda têm uma inserção muito tímida da psicologia, poucas pesquisas no país cruzam os dados da saúde metal e a negritude, e apesar de ser possível perceber que a narrativa do sofrimento perpassa a existência da pessoa negra sem esses dados não é possível construir diagnósticos e políticas públicas que abracem o cuidado de forma apropriada para essa enorme parcela da população.

Antes da reforma psiquiátrica, época da existência dos hospitais manicomiais, as pessoas que desviavam moralmente da sociedade brasileira eram enclausuradas e na maioria das vezes estas não precisavam do diagnóstico psiquiátrico, normalmente a população em situação de rua e negros eram lidos como corpos desviantes, essa população acabou sendo historicamente aprisionada em instituições psiquiátricas apesar de não apresentarem qualquer transtorno. Em recente pesquisa a Universidade de Brasília – UNB constatou que a cada 10 suicídios, 6 eram realizados por pessoas negras com idades entre 10 aos 19 anos, é uma parcela significativa da população que sofre da infância a fase adulta com a violência em suas vivências, violências muitas vezes aparelhadas pelo Estado brasileiro.

Discutir a “Identidade Negra e Espiritualidade” trouxe uma importante reflexão com referências históricas, cristã e da diáspora africana para demonstrar como o racismo se faz presente nas esferas públicas e privadas. Segundo o IBGE, somos um país com mais de 56% de negros e pardos, ainda assim, o Brasil ainda não consegue lidar com a pluralidade de credos e crenças sejam elas de origem cristã, evangélica, muçulmana ou candomblecista. Quando falamos da Igreja Católica precisamos observar como está foi um enorme braço na escravização e catequização dos negros traficados da África e dos povos originários, que já estavam no Brasil com a chegada dos portugueses.

O Frade Franciscano, Faustino dos Santos, observa que se pensarmos na apropriação da fé e da espiritualidade cristã pelos brancos é possível afirmar que a dívida da Igreja Católica com os negros é incalculável. “Enquanto cristão e membro da Igreja Católica tenho ciência do quanto está é branca e embranquecida. Se a igreja quiser fazer uma reparação histórica deverá começar assumindo a importância da negritude na sua estrutura, por exemplo, não existem clérigos em posições de poder ou pessoas pretas em posições de lideranças nas pastorais, e não devemos esquecer que é preciso rever os discursos sobre outras religiões, sobretudo, as religiões de matriz africana”.

Rememorando todos os passos dos negros africanos que foram raptados e trazidos ao Brasil e América Latina por meio de navios negreiros, a advogada e ativista pelo DH Iyagbasse, Vera Baroni, recapitulou que os negros africanos passaram por diversos rituais, dentre eles o ritual do esquecimento, os negros eram orientados a esquecer de tudo que tinham vivido anteriormente, suas relações sociais, cultura, nome, família e espiritualidade. “Hoje quando falamos de racismo estamos tratando de uma realidade muito complexa e de muitas dimensões não só nas relações sociais, a criação social do racismo nada mais é do que a dominação, essa dominação é expressa na opressão e exploração de pessoas. Por isso, apesar de todo trabalho do negro na construção da riqueza desse país não foram suficientes para que negros tivessem condições de vida digna, mesmo sendo maioria da população.” salienta.

A SoliLive sobre “Políticas Públicas” trouxe uma importante reflexão sobre a diferença entre um problema público e as políticas públicas. Reconhecido pela ONU como um dos países mais desiguais, o Brasil ainda hoje tem um enorme entrave para trabalhar nas escalas municipais, estaduais e federais na criação de políticas para as minorias, nelas vemos inseridos negros, mulheres, indígenas e LGBTQI+.

Bacharel em Direito, Leticia Gabriella nos convoca a entender que após a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, pela Princesa Isabel, a abolição da escravatura no Brasil simplesmente fez com que negros e indígenas fossem colocados de lado, descartados para a margem do país. E um dos exemplos que a participante do projeto Educafro trouxe para o diálogo foi um texto construído no projeto que relata que mesmo após abolição o Estado brasileiro permaneceu deixando a população negra marginalizada, inclusive com uma lei que impedia pessoas negras de estudarem.

“Desde a assinatura da Lei Áurea que o Governo deveria pensar em políticas públicas para a população escravizada. Nos dias de hoje, falar em Políticas Públicas é falar de programas que nascem com o intuito de reparação e buscando um equilíbrio nas oportunidades, como é o caso das cotas raciais em universidades ou concurso público”, reforça Leticia.

Compreendendo que pessoas negras celebram sua existência com uma enorme variedade cultural que vai da culinária que alimentam o corpo e artes que completam a alma, a última SoliLive festejou a pluralidade da população preta com um “Sarau de Poesia e Música”, que contou com a presença de poetas, slamers, produtores culturais. No decorrer de todo o bate-papo foi falado o quanto a arte e os espaços culturais trazem momentos de enorme troca e cura contra as mazelas do racismo, muitas vezes possibilitando a renovação da energia da população negra e proporcionando um enorme intercâmbio conhecimento.

Um dos convidados foi o produtor cultural, Sandro Sussuarana, um dos criadores do projeto “Sarau da Onça”, que acontece há 9 anos, em Salvador, na Bahia. Realizado num bairro periférico da capital baiana, o sarau recebe em média 100 a 150 pessoas por noite, comprovando que apesar de toda a criminalização dos espaços de favela/periferia, a população tem sim muito interesse em ler, ouvir ou recitar histórias que se vejam representados.

“Se comprarmos a ideia de que a periferia não está interessada em ler ou em literatura não teríamos iniciado o projeto. O Sarau da Onça recebe de crianças a idosos, o projeto já lançou 3 livros, além de ser um espaço para o lançamento e venda de livros individuais de poetas periféricos”. Questionado porque se propaga a ideia de que a população preta e periférica não lê, Sandro foi categórico, “convivendo com jovens na periferia, percebo que esses livros e essa literatura que dizem que a gente não consome, que não sabemos ou gostamos de ler, são livros que não falam da gente, da nossa realidade, não contam a nossa história. Muitas vezes não se ver nos livros causa desinteresse, além do fato do descrédito de que poderíamos ser escritores”.

Embora a sequência de lives com a temática de combate do racismo tenha sido encerrada com poemas, músicas e exaltações a cultura negra, as discussões virtuais que trouxeram diversos convidados e membros das instituições que compõem a Rede Solivida deixam a reflexão de como a ferida dos povos escravizados ainda segue aberta no Brasil e como o racismo seguirá presente em nossas estruturas públicas e privadas se não discutirmos e entendermos os privilégios da parcela branca e rica do país. Se você ainda não conseguiu assistir as SoliLives, todas as conversas estão salvas em nosso canal do Youtube e na Fanpage da instituição.

Redação: Danielle Antão

Revisão: Edmar Soares

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